RESUMO Inglês de Sousa
CAPÍTULO IA narrativa começa com a chegada do Padre Antônio de Morais ao pequeno povoado de Silves, no Pará. Ali é recepcionado pelo sacristão Macário (Macário de Miranda Vale), um janota, um boa vida que fora criado pelo antigo pároco da localidade, o Padre José, um homem mulherengo e dissoluto, “um pândego! que passava meses nos lagos, tocando violão e namorando as mulatas e as caboclas dos arredores, e gastava em bons-bocados as missas, os enterros e os batizados da freguesia”. Macário, quando criança, foi retirado de seus pais, uma lavadeira amigada de um sargento que o agredia. E foi levado de Manaus para Silves sob os cuidados do Padre José.
CAPÍTULO IIO novo pároco, “com muita cerimônia, e na intenção de informar a S. Rev.ma, em poucas palavras, das distintas qualidades daqueles cavaleiros” (observe-se a ironia), foi apresentado ao moradores da vila:
“— O tenente Valadão, subdelegado de polícia, muito boa pessoa, incapaz de matar um carapanã.
— O senhor capitão Manoel Mendes da Fonseca, coletor das rendas gerais e provinciais, negociante importante, traz aviamentos de contos de réis.
— O senhor presidente da Câmara, alferes José Pedreira das Neves Barriga, que alugou a casa a S. Rev.ma.
— O escrivão da coletoria, Sr. José Antônio Pereira, moço de muito bons costumes.
— O senhor vereador João Carlos, íntimo do senhor capitão Fonseca.
— O Sr. Aníbal Americano Selvagem Brasileiro, professor régio, inteligente e sério.
— O Sr. Joaquim da Costa e Silva, que tem uma boa loja à rua do Porto, e faz o comércio de regatão, mais por divertimento do que por necessidade.
— O Sr. Antônio Regalado, o Sr. Francisco Ferreira, uma chusma, de que se destacava um sujeito de cara redonda.
— O Sr. Pedro Guimarães, eleitor. O povo o chama “o Mapa-Múndi.”
Após as apresentações e cortesias sociais, quando ficou só, Padre Antônio relembra seu passado, no sítio das Laranjeiras, onde o pai, um homem rude e mulherengo, “o capitão Pedro Ribeiro de Morais, pequeno fazendeiro de Igarapé-mirim”, o deixou “crescer a seu gosto, sem cuidar um só instante em o instruir e educar”, tendo sido a mãe, D. Brasília, que lhe ensinou as primeiras leituras, “sempre às escondidas do marido, que não gostava que aperreassem a criança”. O jovem foi enviado ao seminário por força do padrinho para receber uma educação conveniente.
Relembra ainda sua vida de seminarista. Era um jovem de comportamento arredio, que se indispôs com os colegas de classe. Por isso, opta por isolar-se, mas demonstra muita inteligência e impetuosidade, ao ponto de debater questões filosóficas e teológicas de nível elevado com o professor, o afamado padre Azevedo, o maior teólogo do Grão-Pará. Essas discussões acalouradas resultaram em castigo para o seminarista rebelde por defender heresias. Após as punições do reitor, Antônio de Moraes acabou voltando para o seio da ortodoxia católica. Foi uma crise que, apesar de passageira, repetir-se-á ao longo do enredo, um recorrência do espírito agitado do jovem sertanejo.
CAPÍTULO IIIMas, na vila de Silves, nem tudo era reverência e admiração para o padre recém-chegado. Ali ele tem um inimigo feroz, inteligente e sarcástico. Trata-se do professor de latim Francisco Fidêncio Nunes, um inimigo declarado de padres e bispos. Chico Fidêncio era o correspondente do jornal ODemocrata, “órgão público, noticioso, comercial, científico e independente “ de Manaus.
Contraditoriamente, apesar de anticlerical e maçom, era irmão do santíssimo e fazia questão de acompanhar as procissões católicas da vila. Vivia amigado com sua caseira, a Maria Miquelina. Chico Fidêncio, um literato bem instruído, era natural do Rio de Janeiro. Passou por vários empregos até assumir uma cátedra no magistério de Belém. Porém perdeu o emprego público por ocasião da questão religiosa do Império, por ser maçom. Um amigo, o comerciante português Filipe do Ver-o-peso, foi quem lhe arranjou o emprego de mestre-escola em Silves, onde se acomodou à vida pacata do lugar.
Foi a escrita ferina de Chico Fidêncio, com seus artigos panfletários e caluniosos, que desmoralizou o falecido vigário Padre José, acusando-o de mulherengo, dissoluto e gastador dos recursos da igreja. Este, por sua vez, contra-atacava, acusando Chico Fidêncio de gatuno e de ter pecado “contra a natureza”.
Agora, o grande problema de Chico Fidêncio, o Voltaire de Silves, era não conseguir encontrar uma mácula, um deslize moral, no comportamento de Padre Antônio de Morais, um pároco impoluto e exemplar. “O tal padrezinho ou é um santo ou um refinadíssimo hipócrita.”, pensava.
CAPITULO IVEm época de colheita de castanhas, “que naquele ano estava dando um dinheirão”, a maioria dos moradores de Silves abandonava a vila e embrenhava-se no mato para colher a preciosa mercadoria.
Tal movimento migratório em busca de riqueza era incentivado pelo liberal Francisco Fidêncio, o jornalista anticlerical. Já o Padre Antônio de Moraes começava a ficar preocupado com esse êxodo geral do povo, pois isso representava um abandono da fé. Mas o coletor local, o capitão Fonseca, dizia que “a religião não produz castanhas, e sem castanhas não há impostos”.
Para lutar contra a indiferença religiosa, Padre Antônio de Moraes planeja, junto com Macário, um belo discurso durante a missa dominical que iria celebrar o casamento do Cazuza Bernardino com a sobrinha do Neves Barriga, presidente da Câmara Municipal.
Foi aí que o...
“padre Antônio de Morais... trovejou contra a falta de devoção do povo de Silves, condenando, numa eloqüência cálida e correta, o amor do lucro que o levava a abandonar pelos negócios o caminho da salvação, em tão boa hora começado, e desfiou um longo rosário de argumentos colhidos em Doutores da Igreja. Levantando o gesto, e dando à voz entoações lúgubres, carregando os supercílios e apertando os olhos, os belos olhos pretos, para não ver o quadro horrendo que descrevia aos ouvintes atônitos e surpresos, fez uma pintura viva e colorida das torturas preparadas na outra vida para os que nesta se descuidam de Deus por amor do mundo. S. Rev.ma mostrou nada haver de mais contrário ao ensinamento cristão, às eternas verdades da Lei, do que essa ardente preocupação pelos bens terrenos que levava as suas ovelhas queridas a abandonarem o serviço do Senhor, para irem, na sôfrega ambição de ganhar dinheiro, perverter a alma no ermo dos castanhais, onde todos os anos se reproduziam cenas muito pouco dignas de gente católica, apostólica e romana.”
As pessoas que estavam na missa ficaram pasmas de medo. “O povo ficou transido de susto, ao ouvir falar de repente na escura e misteriosa região em que não penetra a esperança”. O discurso do Padre foi um sucesso.
Após o discurso moralizante e aterrorizador do Padre Antônio de Moraes, todos se dirigiram para a festa de casamento, que estava animada e tinha fartura. Ali começou um namoro entre o Totônio Bernardino, filho do patrono da festa, e a Milu, a sobrinha do Neves Barriga. Esse amor avassalador e repentino entre os dois adolescentes não foi aceito pelo pai do jovem, Bernardino Santana, e acabou em tragédia com a morte prematura de Totônio, que “faleceu de amor”, numa alusão crítica ao Romantismo. A comilança desenfreada dos convidados dos noivos também é objeto de crítica irônica do narrador.
CAPITULO VChico Fidêncio, fiel à sua ideologia anticlerical, não dava trégua ao novo pároco. Por isso, ao tomar conhecimento, através do jornal Baixo Amazonas, de Santarém, de que “índios mundurucus ferozes atacaram a pequena povoação de S. Tomé, incendiando as casas, e matando muitos moradores”, desafiou o Padre Antônio a catequizá-los.
Avaliando sua vida monótona e medíocre de pároco de interior, o reverendo de Silves começou a pensar seriamente no desafio do anti-religioso Chico Fidêncio.
CAPITULO VIApós uma longa noite de sono, Padre Antônio, depois de meditar muito, decidiu pela catequese dos selvagens mundurucus, aceitando, com orgulho evangélico, o desafio zombeteiro do “ateu” Chico Fidêncio.
“— Sabes que estou decidido a fazer uma missão ao porto dos Mundurucus?”, disse para o sacristão Macário, que ficou desconsolado, pois essa resolução sublime representava o fim de sua vida mesquinha de bonança e regalias. S. Rev.ma estava decidido a “converter os selvagens, trazê-los ao seio da religião católica, e ao mesmo tempo libertar o Amazonas dessa terrível praga de índios bravos que lhe entorpecia o progresso”. E sonhou ainda com as glórias junto ao alto clero de Belém pelo desprendimento católico e pelo feito magnífico da catequese de selvagens. Essa empresa evangelizadora o colocaria à altura de um Francisco Xavier e de um José de Anchieta.
Numa passagem de magnífico humor, neste capítulo, o autor, Inglês de Sousa, relata o “maquiavelismo” do sacristão Macário para obstruir o empreendimento evangélico do Padre Antônio de Moraes:
“— Patrício, você quer levar o senhor vigário ao porto dos Mundurucus?
— Uai! onde é isso?
— O porto dos Mundurucus é lá no fim do mundo, nem eu mesmo sei, explicava Macário. É lá uma coisa que se meteu na cabeça do senhor vigário. Quer ir por força à terra dos gentios que comem gente, para servir a Nosso Senhor Jesus Cristo!
O tapuio que isso ouvia, dava de andar para longe, silenciosa e apressadamente, receando que o obrigassem a pegar no remo. E Macário, mostrando muito desânimo, ia dizer ao vigário:
— Saberá V. Rev.ma que não é possível obter remeiros.”
Ainda neste capítulo, assenta-se uma crítica ao amor romântico do personagem Totônio Bernardino, que, vivendo uma paixão impossível (pela Milu), quer morrer pela religião, levando o padre e o sacristão ao encontro dos índios selvagens, uma vez que ele, Totônio, não pode morrer pela pátria, numa guerra nacional, nem tem coragem de morrer de amor (numa alusão à moda suicida do Romantismo, ainda em voga quando da publicação da obra, 1888).
CAPITULO VIIPor fim, apesar dos obstáculos e tramas de Macário para retardar os sonhos evangelizados de Padre Antônio de Moraes, eles partem numa igarité (canoa) para catequizar os selvagens mundurucus. Durante a viagem, o reverendo lembra-se com saudade de sua ida para o seminário, anos atrás, deixando a “vida livre de campônio desocupado” na fazenda dos pais.
Macário arranjara dois rapazes do Urubus, um arraial vizinho: Pedro, o mais velho, e João, o mais magro, escondendo deles o destino da viagem, “dizendo que se tratava de ir à boca do Guaranatuba”. Os remadores não sabiam que estavam a caminho do Porto dos Mundurucus, os índios selvagens que devoravam seres humanos.
Macário contava com a desistência de Padre Antônio de Moraes, quando começassem os inconvenientes e sofrimentos de uma viagem tão longa e perigosa. Caso contrário, o sacristão lançaria mão de seu providencial “maquiavelismo” dizendo para os remadores:“ — Vamos, rapazes, remem!
Pouco nos falta para chegarmos ao porto dos Mundurucus. E devemos lá chegar quanto antes. Quem sabe se algum cristão não está lá à nossa espera para o salvarmos de ser comido pelos gentios?”Já o Padre sonhava em martírios pela fé, almejando tornar-se um “Francisco Xavier das florestas amazônicas.” Os remadores percebem que a tripulação viajava rumo às aldeias mundurucus e pedem para atracarem num sítio próximo. Ali são recebidos por uma tapuia de nome Teresa, que lhes dá abrigo até que o marido, Guilherme, que estava ausente devido à salga do pirarucu no furo de Uraná, voltasse.
Durante a noite, os remadores fogem “na igarité de padre Antônio, levando-lhe a roupa, as previsões, tudo”. Mas Padre Antônio não desiste. Alucinado com a missão evangelizadora, que lhe traria muita honra e distinção apostólica junto ao alto clero na capital do Pará, compra da tapuia Teresa uma pequena canoa, recém calafetada, e dois remos e segue viagem com Macário. O sacristão, subserviente e covarde, resistiu inutilmente em prosseguir viagem tão arriscada e perigosa, mas em vão. A vontade do padre era-lhe superior.
CAPITULO VIIIOs dois seguiram rio Canumã acima. A paisagem do Amazonas era exuberante, chegando a embotar a razão dos dois remadores.
“Os sabiás, os corrupiões, os diversos trovadores das selvas amazônicas recolhiam-se à frescura do arvoredo para a modulação dos trenos amorosos no mistério das folhagens. Os macacos, preguiçosos e sonolentos, internavam-se no mato em busca de algum regato cristalino ou, saciados de castanhas, balançavam-se pachorrentamente em delgados cipós. As próprias ciganas arrastavam o grasnar desagradável, como vencidas do cansaço e do silêncio, que lhes não permitia a índole barulhenta e irrequieta. Os peixes tardavam em vir à tona da água, ou boiavam sem ruído, para não interromper a calada do dia. Era intenso o calor.”
Padre Antônio de Moraes continuava “delirantemente” decidido a prossseguir com sua grandiosa e sublime missão catequética. Já o Macário estava inconsolável. Resmungava. “Aquilo já passava de caçoada!” Queria rebelar-se, mas não tinha a força de caráter para tanto, pois era um acólito fraco e subserviente.
Com a chegada da noite, o barco parou numa ribanceira para os dois remadores dormirem, o que não conseguiram fazer por força de uma multidão de insetos (carapanãs, muriçocas e piuns) que lhes furava a pele e lhes chupava o sangue. Foi uma noite infernal. Macário estava enlouquecido de raiva.
Padre Antônio começava a duvidar da correção de sua empresa evangelizadora. “O calor ocasionado pelo afluxo do sangue ao rosto, o cansaço, a insônia forçada, o silêncio da noite e o cheiro sensual da floresta, trazido por uma brisa refrigerante, perturbando-lhe o cérebro desequilibrado, lançavam-no numa espécie de alienação mental, no puro subjetivismo dos mártires e dos loucos...!”
Pela manhã do dia seguinte, o padre e o sacristão voltaram a remar rio acima sob forte chuva, uma verdadeira tempestade. Veio a noite e novos terríveis sofrimentos desta vez sob um chuvisco persistente.
Pela manhã, avistaram um ubá (canoa), tripulada por três índios, subindo o rio na margem oposta. Padre Antônio gritou para eles: “— Bom-dia, patrícios!” Receberam em resposta flechadas. Eram mundurucus. Trataram de fugir e esconder-se num matagal próximo. De repente, apareceram dois índios rompendo o mato com facão...
Macário desapareceu em desabalada carreira.
Já o Padre Antônio...
“Padre Antônio caiu de joelhos sobre a relva ainda úmida das chuvas da véspera, e, juntando as mãos numa agonia, ergueu os olhos para o céu, num olhar em que pôs toda a sua alma, e aguardou silencioso o golpe que o devia prostrar para sempre.”
CAPITULO IXNeste capítulo, a título de suspense, o autor retorna a narrativa para a vila de Silves, onde já se encontra o sacristão Macário, cuidando do rebanho de Padre Antônio de Moraes, na ausência deste.
Macário escapara da morte por ocasião do ataque, que ele pensava ser de índios mundurucus, saltando na canoa e remando até o sítio da tapuia Teresa, deixando o Padre Antônio de Moraes para trás.
“— Se ficasse éramos dois a morrer, morrer por morrer, morra meu pai que é mais velho; ou, por outra, morra padre Antônio que estava morto por isso.”
Só que a história que o sacristão contou para os moradores da vila Silves foi outra, bem diferente:
“Fugindo a um ubá selvagem, que os perseguira por duas horas, numa terrível porfia de remos, sob uma nuvem de flechas, tinham ido ele e o senhor vigário abrigar-se num mato cerrado, esperando que os gentios lhes perdessem a pista. Mal se tinham julgado a salvo dos índios do ubá, foram agredidos por um bando de parintintins; que ali se achavam, naturalmente para dar caça aos mundurucus do ubá. Logo ao primeiro golpe os parintintins atiraram ao chão o ardente missionário que se preparava para lhes fazer um discurso evangélico. Então ele, Macário, vendo o seu protetor e amigo, o arrimo da sua vida, o esteio da religião e da moral, banhado em sangue, perdera a noção do número e da força, e num esforço desesperado e louco — confessava-o — investira com os selvagens, armado de remo, e disposto a morrer, vingando o companheiro. Mas o gentio lá de si para si pensou que um homem tão valente como o Macário se mostrava não devia morrer sem as habituais cerimônias selvagens. Macário fora agarrado e amarrado a um castanheiro. Depois os índios retiraram-se muito alegres para o interior da floresta, levando em charola o corpo do missionário para lhe servir de prato de resistência nos seus horríveis festins noturnos. O sacristão ficara por muitas horas atado ao castanheiro, esperando a cada momento ser, como S. Sebastião, convertido em paliteiro, pelas flechas dos parintintins. Mas ao que lhe parecera, ao partirem aqueles selvagens levando o corpo de padre Antônio, avistaram os mundurucus do ubá, e trataram de os apanhar numa cilada, esquecendo o pobre prisioneiro branco. Ou seria outro o motivo da demora que permitira à Providência Divina, a rogo de Nossa Senhora do Carmo e do Senhor S. Macário, realizar em favor do sacristão de Silves um grande e verdadeiro milagre. A embira com que os índios lhe haviam amarrado os pés era muito verde. Uma cutia, que por ali passara, sentira o apetite aguçado pelo cheiro vegetal da fibra tirada de fresco, e a roera de tal sorte que com um pequeno esforço Macário pudera libertar os pés. Conseguira livrar depois as mãos, esfregando com força a embira na aresta duma pedra grande que ali estava, a modo que de propósito, e correra para o porto. Os mundurucus do ubá haviam passado, sem dar pela montaria oculta entre as canaranas. Macário tratara de navegar para o lago Canumã, com um grande pesar de não ter apanhado a cutia, que se fora embora, apenas concluída a tarefa de que parecia incumbida. Era ou não era uma obra asseada aquela história da guerra dos parintintins com os mundurucus e da cutia mandada por Nossa Senhora do Carmo?”
Macário, elevado à categoria de herói, administra agora os preparativos para o enterro do jovem Totônio Bernardino, que morreu de amor, numa explícita crítica ao Romantismo.
E agora Chico Fidêncio, crente na história inverídica de Macário, é um admirador do suposto falecido Padre Antônio de Moraes, sobre o qual escreve um artigo elogioso:
“Padre Antônio de Morais era um desses raros exemplos de abnegação e culto do Evangelho. Era um soldado da idéia (antiquada!) que soube morrer no seu posto, e que deve servir de modelo aos carcamanos que nos mandam de Roma.”
Já o capitão Manuel Mendes da Fonseca perde o rendoso cargo de coletor para seu substituto, o escrivão José Antônio Pereira, devido a uma trapaça administrativa deste que se aproveita da mudança de poder político no Pará, durante a questão religiosa. O poder saíra das mãos dos maçons para as mãos dos católicos. O capitão Mendes da Fonseca culpa também sua mulher, D. Cirila, que insistiu para que ele tirasse licença do cargo para a família ir para as praias apanhar castanhas, deixando, assim, o cargo nas mãos do substituto oportunista. “A vila retomara o seu aspecto normal.”
CAPITULO XEnquanto o Macário vive as glórias do retorno milagroso à vila Silves, Padre Antônio de Moraes, no capítulo anterior, não fora atacado por selvagens mundurucus. Aqueles dois homens de facões às mãos eram João Pimenta, velho mundurucu convertido ao Catolicismo, e seu neto, Felisberto, moradores do sítio furo da Sapucaia, nos sertões do Guaranatuba, que procuravam pelo padre e pelo sacristão.
Padre Antônio perdera os sentido quando da abordagem dos dois sertanejos e fora levado para aquele local paradisíaco, o sítio furo da Sapucaia, refúgio do falecido padre João da Mata, que ali viveu maritalmente com a linda mameluca Benedita, com a qual teve uma filha de nome Clarinha, que também morava ali com o avô, João Pimenta, o Jiquitaia, e o irmão, Felisberto, que resgataram o padre.
Padre Antônio de Moraes, que a princípio repudiara a moça, apaixona-se por Clarinha, a bela sertaneja, filha do amor “pecaminoso” entre o Padre João da Mata e a mameluca Benedita.
CAPITULO XIPadre Antônio de Moraes ainda pensava em catequizar os selvagens mundurucus. Mas um sentimento mais forte apodera-se de seu corpo e de sua alma: o amor por Clarinha, a bela mameluca que se entrega totalmente ao jovem padre idealista.
O missionário vive um conflito espiritual intenso e perturbador. Aqui, neste capítulo, as características do romance naturalista estão mais bem explicitadas:
“Sufocaria aquele insensato amor, aquela paixão criminosa, embora ela tivesse de reduzir-lhe o coração a cinzas. Morreria desesperado e louco, mas não ofenderia a pobre menina, confiante e carinhosa, falando-lhe dum sentimento que a moral e a religião repeliam, e que ela não poderia aceitar sem perder a alma pura e inocente. Entretanto, ao passo que assim pensava, uma agitação extrema o perturbava, como se tivesse diante de si um tesouro inapreciável a que bastasse estender a mão para o possuir. O vento de virtude que perpassara pelo seu cérebro exaltado abalara-o profundamente, e inconscientemente, sem saber o que fazia, torturado por uma angústia, começou a falar, doce e convincente, com uma tristeza infinita na voz, mal percebendo o efeito das suas palavras sobre a rapariga, que a princípio se voltara surpresa e, depois, se deixara ficar sentada na cama, ouvindo-o de olhos baixos, com os braços caídos, inertes, para o chão.”
Mas o missionário não resistiu. A sensualidade falou mais alto do que a razão religiosa. A carne do sertanejo foi mais fraca do que o espírito do clérigo. E então...
“Então ele, saindo de uma luta suprema, silencioso, com um frio mortal no coração, com o cérebro despedaçado por um turbilhão de sentimentos contrários, atirou-se à moça, agarrou-a pela cintura e mordeu-lhe o lábio inferior numa carícia brutal. Foi breve a luta. A neta de João Pimenta caiu exausta sobre o tapete de folhas úmidas do orvalho, douradas pelo sol. Entre os ramos dos cacaueiros os passarinhos sensuais cantavam.”
CAPITULO XIIEnquanto o Padre Antônio de Moraes vivia seu amor com Clarinha, a primeiro e única paixão de sua vida.
“Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupara o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjugar. E como os senhores padres do Seminário haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular e conter a ação determinante da hereditariedade psico-fisiológica sobre o cérebro do seminarista? Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas sob um ponto de vista acanhado e restrito, que lhe excitara o instinto da própria conservação, o interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos, como supremo bem, a salvação da alma, e como meio único, o cuidado dessa mesma salvação. Que acontecera? No momento dado, impotente o freio moral para conter a rebelião dos apetites, o instinto mais forte, o menos nobre, assenhoreara-se daquele temperamento de matuto, disfarçado em padre de S. Suplício.
Em outras circunstâncias, colocado em meio diverso, talvez que padre Antônio de Morais viesse a ser um santo, no sentido puramente católico da palavra, talvez que viesse a realizar a aspiração da sua mocidade, deslumbrando o mundo com o fulgor das suas virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos. Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade quase rudimentar, sem moral, sem
educação... vivendo no meio da mais completa liberdade de costumes, sem a coação da opinião pública, sem a disciplina duma autoridade espiritual fortemente constituída... sem estímulos e sem apoio... devia cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio, sob a influência enervante e corruptora do isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação, perdendo o senso moral e rebaixando-se ao nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.”
Nesse ínterim, Felisberto, irmão da moça, travara conversa no povoado de Maués com um comerciante de vila Silves, o Costa e Silva, o qual pensava estar morto o vigário de sua paróquia.
Felisberto assegurou-lhe o contrário. Padre Antônio estaria vivo. Esse colóquio entre o mameluco e o comerciante de Silves foi prontamente comunicado ao Padre.
Isso fez com que o missionário sonhasse com o retorno a sua paróquia de origem. A princípio, temeu que os moradores de Silves tivessem tomado conhecimento de sua vida “pecaminosa” no sítio furo da Sapucaia. Mas, após certificar-se de que ninguém em Silves sabia de sua verdadeira história, planejou um retorno honroso. Levaria consigo Clarinha.
CAPITULO XIIIPadre Antônio de Moraes deixou o sítio furo da Sapucaia em companhia de Felisberto, Clarinha e João Pimenta. O missionário planejou que Felisberto seria seu novo sacristão e Clarinha cuidaria de sua casa. “A princípio a Clarinha ficaria num sítio do rio Ramos, no Tucunduva, enquanto o senhor padre arranjasse casa e dispusesse tudo para a receber e agasalhar dignamente”.
Durante a viagem, Padre Antônio reencontra um velho conhecido de Silves, o capitão Fonseca, que ali estava negociando peixe salgado e cacau com uma velha tapuia, a tia Gertrudes, em companhia da qual provisoriamente ficaria Clarinha, conforme planejara o reverendo.
Agora comerciante, depois que perdera o emprego de coletor, o capitão Fonseca contou ao padre a história inverídica que o sacristão Macário havia contado aos moradores de Silves. O missionário chegou a rir da patranha do sacristão. Mas, para não incorrer em contradição, aproveitou essa história para montar a sua, também inverídica:
“Quando ouviu a história narrada pelo sacristão Macário, padre Antônio de Morais sentiu um vivo rubor subir-lhe ao rosto e afoguear-lhe o cérebro, perturbando-lhe a vista. Um grande embaraço o enleava, e não sabendo o que devia dizer, ouvia silencioso o capitão Mendes da Fonseca falar, numa voz que a custo, por fim, conseguira guardar a serenidade do principio, como se um vivo despeito o agitasse. Esse embaraço foi, porém, passageiro. Compreendeu de relance a gravidade da situação em que se achava, o perigo que corria em desmentir o astuto sacristão cuja inventiva o maravilhava, dando-lhe uma forte vontade de rir da história da cutia misteriosa. Era forçoso fazer o sacrifício da verdade ao plano que engendrara, cujo resultado dependia da completa ocultação da falta cometida e que devia ser sepultada em eterno silêncio. Quando o capitão acabou de falar, o padre, disfarçando com dificuldade a pungente emoção, sentindo a mentira queimar-lhe os lábios, na sensação física do remorso, explicou que o Macário se enganara, mas não mentira. E como se tivesse pressa de se ver livre daquele penoso sacrifício, selando com a mentira o mistério dos três meses passados à sombra das laranjeiras em flor no sítio do Sapucaia, acrescentou em palavras breves, que naturalmente o Macário o tivera por morto, mas que a verdade era outra. Levado pelos índios, desmaiado e malferido, fora entregue aos cuidados de um pajé que o curara com o suco de algumas plantas. Os selvagens o haviam poupado por lhe conhecerem o caráter sacerdotal pela batina e pelo chapéu de três bicos, e o tinham posto em liberdade, depois de algumas conversões que fizera. Que tendo passado três meses nas selvas, pregando o Evangelho, resolvera regressar à sede de sua paróquia, e que achando-se à margem do Abacaxis encontrara uma família de tapuios, avô, neto e neta, que lhe oferecera passagem até o Amazonas.”
Portanto, se o sacristão Macário fora salvo por uma misteriosa cutia que lhe roera as cordas com que os índios o amarraram, a salvação do Padre deu-se em virtude das vestimentas sacerdotais.
Ainda nesse capítulo, Inglês de Sousa faz uma crítica aos comerciantes, regatões, que exploram os pobres ribeirinhos do Amazonas, comprando-lhes produtos a preços muito baixos.
O capitão Fonseca colocou o padre a par da vida dos moradores da vila. E disse que seu regresso era necessário para moralizar aquele povoado em vias de perdição.
E falou ainda da notícia que foi publicada no periódico Diário do Grão-Pará, narrando as façanhas evangelizadoras do vigário de Silves, que fez com que o Padre Antônio de Moraes sonhasse com uma carreira eclesiástica gloriosa em Belém, cidade da qual fez lembrar-lhe o passado de rapazola recém-chegado na galeota do padrinho para tornar-se seminarista.
E assim fecha-se o capítulo final, tudo confluindo para Belém do Pará, cidade que, na origem, causou espanto ao jovem noviço Antônio de Moraes quando se dirigia ao seminário; e que agora, já padre famoso em virtude da fraudulenta notícia de catequizador de índios bravios, alimenta sua ambição eclesiástica, fazendo-lhe sonhar com recompensas episcopais e honrarias imperiais.
Prof. Welton Braga